Psicografia – A menina e o retrato do Pai
Um dia, mais um dia, mas foi esse dia que mudou tudo em mim, à minha volta.
Foi o dia que me marcou e anos a fio me atormetou e culpabilizou...
Nesse dia o sol brilhava. Um dia bonito que interrompeu o inverno rigoroso e cruel que atravessávamos.
Já há algum tempo que alimentava em mim o ódio, a angustia e a tristeza.
Eu, o homem respeitado da aldeia que tinha recusado abandonar os sons da terra, os seus cheiros e sabores pelo rebuliço da cidade.
Eu, a quem os mais velhos pediam ajuda para as tarefas árduas que já não conseguiam executar.
Eu, que acarinhava as poucas crianças que restavam à aldeia.
Eu, que tinha uma casa, uma família, uma filha...
Eu, que nesse dia esqueci tudo isto...
Já fazia algum tempo que havia descoberto que minha esposa tinha um caso com o meu melhor amigo. Tinha esgotado todas as minhas tentativas racionais de dialogo com ambos e que não surtirem quaisquer efeitos.
Estavam juntos os dois mesmo debaixo do meu nariz...
Ao fim de algum tempo deixei de lutar por mim e entreguei-me à bebida.
A bebida funcionava como um porto de abrigo e nela encontrava por instantes o que restava de mim e de minha dignidade, pelo menos era assim que eu sentia.
Nesse dia, já com a minha dose diária de álcool mais que ultrapassada, decidi que esta história tinha que acabar.
Enchi o peito de ar e sem largar a garrafa lá fui eu por entre as curvas imensas delineadas na minha cabeça e fui até minha casa... tinha a certeza que os ia encontrar...
Assim foi, abri a porta e lá estavam debaixo daquele tecto que outrora albergara a felicidade.
Riram-se de mim, ou da minha figura... não sei bem...
Perguntaram ao que vinha.
Respondi que vinha fazer um ultimato, e encarando a minha esposa olhos nos olhos lhe disse: "Escolhe. Ou ele ou eu! Mas tem consciência de que se for ele sais já desta porta!"
Eles nem hesitaram. Levantaram-se num ápice e saíram de mãos dadas.
Não me lembro de ter chorado. Lembro-me sim de ter aberto mais uma garrafa. Depois pensei o que seria de mim, e o pior, o que pensariam as pessoas disto tudo.
Ia ser motivo de chacota, de piadas, de risos e de falatório.
Comecei a imaginar-me pela aldeia e a ver todos os meus conhecidos e amigos a calarem-se à minha passagem, a insultarem-me e a rirem-se de mim.
Abri mais uma garrafa.
Vim para o quintal e sentei-me à beira do velho poço. Não. Decidi. Não vou ser motivo de chacota, nem de noticia ridícula... olhei para o poço. Bebi o que restava da garrafa de uma só vez. Não hesitei mais e atirei-me.
Senti a a água gelada a paralisar-me o corpo e a mente.
Ainda tentei gritar mas a minha voz estava paralisada e não saiu um único som.
O som da água entoava na minha cabeça e vencido pela força da minha loucura deixei-me ir... O que passei a seguir, foram momentos tão dolorosos que não adianta falar deles, o vazio, a solidão, a não compreensão vieram primeiro. O ódio, a angústia e o medo depois.
Atormentei os dois que eu achava responsáveis da minha morte. Não fiquei mais feliz, mas contentava-me.
Um dia veio o arrependimento. No dia em que, deambulando pela minha casa, vi uma menina agarrada ao um retrato dizendo: "Até logo paizinho!"
Fiquei curioso e quando ela saiu aproximei-me. Dei conta que o retrato era o meu. Era a minha filha... seria possível ter passado tanto tempo?
Chorei, chorei desalmadamente.
Nos dias seguintes mantive-me por perto e todos os dias aquela criança nao saía de casa sem cumprimentar o meu retrato, e assim que chegava a casa corria para o abraçar e contar ao pormenor o que tinha feito nesse dia.
Eu ficava quieto, bem juntinho a ela e nesses instantes eu sentia o seu amor.
Arrependi-me tantas vezes que acho que lhes perdi a conta. Pedi-lhe desculpas vezes infinitas, por também eu a ter abandonado de forma tão brusca e trágica. Arrependi-me por cada abraço que não lhe dei, cada beijo que ficou nos meus lábios e que devia ter sido cravado no seu rosto... Arrependi-me por não lhe poder dizer que a amava.
Valeu-me o seu amor. Valeu-me as suas gargalhadas e partilha de emoções próprias da evolução.
Mas acima de tudo continuo a agradecer por me me ter continuado a chamar de PAI.
MJC
AELP, 19 Set 2013
Linda história! E assim se aprende a sermos melhores. Bendita filha e que Deus ilumine o pai. Bem Haja. Muito obrigado.
“Até logo, paizinho! ” – assim fala menina olhando o retrato do pai que, em momento agudo de desânimo/ desespero decidiu partir, afogando-se. História comovente, história linda: assim aprendemos a ser melhores. Muito obrigado.